domingo, 15 de setembro de 2013

Jazzland

19 de agosto, 2005, New Orleans.

- Mãe - disse; nessa época eu não passava dos 7 anos - O que é aquilo?

Estávamos em um parque de diversões, sentados na sua majestosa roda gigante, no topo, lá no topo,
onde os casais realizam os seus mais devidos e deslumbrantes sonhos, e os solteiros pestanejam ao ver, horrorizados, o mar de horizontes.
- O que, menino? - respondeu ela, apertando os olhos e buscando algo que fosse chamar a minha atenção, ao ponto, de'u comentar isso com ela. As nuvens ameaçavam cada vez mais largar as suas primeiras gotas de chuva, que daria início a talvez uma tempestade. Por esses dias o céu estava de fato muito confuso, o clima mudava muito rápido e de uma hora pra outra, quando estava sol, já estava chovendo. Além do mais, a previsão meteorológica não estava ajudando em nada.
Tínhamos decidido ir para o parque em plena sexta-feira porque era especificamente o dia do meu aniversário. Estava fazendo sete anos, e finalmente poderia brincar nos brinquedos dos "mais velhos", que antes não podia.
Em 2002, quando a Six Flags assumiu e reestruturou todo esse parque, todo mundo comentava que os seus brinquedos competiam com os melhores do mundo. Com toda essa empolgação passando de boca em boca, fiquei extremamente ansioso ao ponto de contar, nos dedos, os dias, desde uma ou duas semanas antes.
Mas até que enfim estava lá.
No ponto que considerava, o mais alto e mágico de New Orleans.
- Sério que vai chover de novo?
- Não tô falando das nuvens não, mãe!
- Do que então, menino?
- Ali em baixo - apontei. Ela se revirou um pouco para olhar onde estava apontando.
- Ainda não tô vendo nada.
- Aquele cara fantasiado ali, perto do Barbe's Ice Cream Shop - Lembro-me de que ele estava nos encarando, mas era inocente o suficiente para não sentir nenhuma maldade daquele palhaço mal vestido.
- Que... - Quando a minha mãe começou a falar a roda gigante parou, estávamos no meio do "percurso", porém ainda muito longe do chão - O que foi isso?! - Exclamou ao ser cortada pelo acontecimento repentino. Uma luz vermelha piscava no painel lá em baixo. E dois ou três especialistas tentavam fazer a máquina voltar a funcionar sem maiores danos.
"Poxa" pensei na hora.
A montanha russa, ali ao lado, fazia um barulho estridente quando o carrinho passava, parecia que ia despencar a qualquer momento.

O palhaço não estava mais lá ao lado do sorvete gigante.


Não sei quanto tempo passamos ali em cima, mas a maioria das pessoas já resmungavam e reclamavam, outras poucas se encolhiam nas cestas com medo de uma tragédia maior. Mais algumas horas e a lua se estendia com todo o seu esplendor quase no topo do céu, agora já sem nuvens.
Pelo menos não tinha chovido né?
Demorou bastante, depois de anoitecer, para que eles de fato conseguissem consertar a máquina. O gerente da Six Flags se desculpou pra cada um, dando um ou dois ingressos premium para todos como pedido de desculpas. 
Quando finalmente desci do vagão, respirei fundo e mergulhei contra toda aquela multidão que reclamava com os funcionários e com o gerente do ocorrido.

O parque já estava pra fechar.

E não sei como, nem porque, na minha completa independência fui procurar a saída sozinho.
Se tivesse consciência da noite que me rodeava, com certeza não o faria.
Mas estava nos 7 anos da minha inocência.
Era uma criança feliz.
E independente...
pensava eu.

- Olá - me disse uma voz rouca.
- Sabe onde é a saída... - me virei - moço?

E lá se encontrava ele outra vez.
Com uma bola vermelha no lugar do nariz...

- Pois é nada mais do que óbvio que eu possuo este conhecimento - Lembro de ter olhado pra ele e assentido, mesmo sem compreender muito do que tinha acabado de falar.
- Pode me levar lá? Acho que me perdi da minha mãe - disse persistindo com os meus 7 anos de idade.
- Me acompanhe - disse ele lambendo o seu próprio lábio superior enquanto se virava para tecer um caminho.

Recordo-me de seguir aquele palhaço sanguinário, até ele me mostrar a saída.

Recordo-me de encontrar a minha mãe em prantos ao lado de fora, gritando contra alguns policiais, em um grupo onde as pessoas se sobressaltavam.

- Oi mãe... Você se perdeu, que bom que eu te achei né? - Disse eu - Podemos ir pra casa agora - Ela ficou pasma de repente, e sem dar uma resposta, foi em direção ao nosso carro estacionado. A essa hora era o único em todo o estacionamento do parque - Mãe? - Senti que tinha alguma coisa errada com ela - Tá bom... fui eu que me perdi... desculpa tá? Não vou mais me perder, que bom que o senhor palhaço me ajudou.
- Porque você foi fazer isso, Peter?
- Já pedi desculpas mãe... - lágrimas se encheram nos meus olhos - Eu não sabia que ia me perder.

O caminho volta pra casa foi em silêncio. Achei que ficaria de castigo por um bom tempo naquela época. Mas não fiquei. Foi muito pior.
A minha mãe passou a conversar muito pouco comigo, não achei que o que tinha feito fora tão grave assim.
Dois dias depois, a cidade foi evacuada pelo tão famoso furacão Katrina.
E no mesmo dia o parque foi abandonado.

Com o tempo, a minha mãe foi cada vez mais conversando menos comigo.
Fiquei sem entender por muito tempo.
Mas com o passar dos anos... a minha mente inocente foi se transformando em algo mais maduro, algo mais concreto e desconfiado. Não sei quanto tempo passou para que isso de fato acontecesse.
Até porque se perde a noção de tempo quando você está desse jeito.
Só sei que ao voltarmos para a cidade, depois de bastante tempo morando fora, a primeira coisa que fiz foi caminhar pelas ruas maltratadas, até chegar no tão glorioso Parques six Flags, do qual todos chamavam de Jazzland.
Entrei por aqueles portões fedendo a ferrugem.
Atravessei aqueles brinquedos compostos por ruínas.
E de longe...
vi uma figura conhecida;
Ao lado da antiga loja de sorvetes
Uma figura que, desta vez, me arrepiara a espinha.

Aquele ser emanando o cheiro de sangue, com a maquiagem alegre horrorizadamente borrada, e aquela mesma bola vermelha no lugar do nariz. Ali se encontrava.
Olhando para o topo da roda gigante, que milagrosamente ainda estava em pé.
Como se estivesse esperando outro garoto de sete anos olhar pra ele lá do topo.
Para que a roda gigante parasse, o garoto se perdesse, e ele se lambuzasse com os seus ossos.

Com passos simples e largos, parei ao seu lado.
- Onde está? - Exclamei sem olhar para o seu rosto. Minha voz falharia se o fizesse.

Os seus olhos reviraram, e lentamente, a sua cabeça começou a se virar para mim, aqueles lábios intensamente vermelhos sorrindo, sem parar.
Um sorriso sarcasticamente impiedoso.

- No túnel fantasma - Respondeu a criatura, sem ao menos mover os dentes.
Aquela voz rouca me fez tremer.

Caminhei até a entrada, ignorei o tremzinho que levava as pessoas pra dentro, e com passos largos adentrei o brinquedo. Não precisei andar muito, logo logo cheguei em uma sala úmida, escura e sem saída.
Busquei um interruptor na parede, e ascendi as luzes.
No chão vermelho repousavam uma grande dúzia de ossos.
Me abaixei e peguei um deles.
"Muito real para um brinquedo" - pensei, com o óbvio na cabeça.
Peguei um deles, o que parecia ser do braço, e cheirei.
Um cheiro putrefaço e fétido fez os meus olhos lacrimejarem.

Mas, por mais que aquele cheiro ruim tomasse conta totalmente do ambiente.
No fundo, sentia o meu cheiro naqueles ossos.

Por mais que não queria que fosse.

Aqueles ossos pertenciam a mim.






Nenhum comentário:

Postar um comentário